segunda-feira, 25 de junho de 2012

Medo e Delírio no Paraguai - capítulo I

Sempre que volto para a região de Terra Roxa, onde nasci e me criei, penso em como Rimbaud ficaria satisfeito em atravessar algumas daquelas cidades. O poeta, que queria ver vitrines e salões da civilização bombardeados de poeira, obrigados a comer seu próprio pó, aqui veria centros urbanos nascerem sem jamais conseguirem esconder o barro de onde vieram. A terra vermelha, sobre a qual a fronteira entre Brasil e Paraguai se levanta, marca botas, roupas, paredes, animais, gentes e tudo o mais que ali toma lugar.

Ia assim pensando dentro daquele ônibus que, apesar de visivelmente limpo e bem cuidado, carregava um aspecto de encardido até suas reentrâncias devido a anos mastigando a poeira daquelas estradas.  Por mais que a civilização dali se aproxime, a terra vermelha estará sempre cobrando nossa origem, lembrando do nosso aspecto primitivo e selvagem.

E era a presença daquela terra que começava a me deixar deprimido. Eu havia abandonado meu trabalho para viajar pela América do Sul tentando ser um jornalista independente, sem jamais ter escrito uma matéria sequer para os jornais e revistas aos quais eu queria vender material. Depois de seis meses de viagem com minha namorada, sem ganhar sequer um tostão, resolvi seguir viagem sozinho para pesquisar a vida dos brasiguaios. Queria escrever um livro sobre o assunto, sem me dar conta de que não sabia absolutamente nada a respeito do tema e que jamais escrevi uma história que tivesse mais de três páginas.

Além de ignorância e inexperiência, também colaborava para a perspectiva de fracasso de mais esse empreendimento o fato de eu ter sido sempre um sujeito ensimesmado pouco sociável, que precisaria agora entrar em contato com os mais diversos tipos de gente se quisesse mesmo traçar um bom perfil da situação da área. Tal como o vermelho da terra insistia em manchar as calçadas e vitrines das cidades por onde passava, também a realidade começava a manchar e ameaçar sufocar mais um sonho.

A paisagem, apesar de bastante rural, já era bastante distinta do ambiente tribal que tinha conhecido no interior da Bolívia. O Paraguai, apesar de pobre e pouco desenvolvido, já tem sua cara de mundo ocidental e capitalista, com seus cartazes coloridos nas paredes dos bares de rodoviária e latas de Coca-Cola abandonadas em paradas de ônibus.

Mas não foi uma lata de Coca-Cola a última imagem que vi antes de apagar. O que surgiu dentro dos meus olhos, e permanece vivo até hoje mesmo que eu queira esquecer, foi a primeira visão da solitária e fúnebre menina que seguiria aparecendo até o fim dessa viagem. Alta e esguia, com pela muito clara, caminhava solitária sobre o acostamento e me olhou diretamente nos olhos, como se soubesse que eu passaria por ali, de onde eu vinha e para onde ia. O olhar profundo e ao mesmo tempo vago me de uma sensação de horror, como de ter sido descoberto em uma fuga ou como se soubesse ser perseguido.

Mal deu tempo de esfregar as pálpebras para ver melhor e ouvi o baque seco seguido da sensação de abandonar a poltrona, como se o ônibus perdesse o contato com o solo. O que se seguiu foi uma tremenda confusão de visões e sons dos quais não consigo me aproximar e descrever.

Até agora, não pude compreender o que verdadeiramente aconteceu, mal sei dizer a altura do trajeto por onde andava e, se meus cálculos estiverem certos, despertei a centenas de quilômetros adiante de onde eu planejava estar, três dias depois da data em que deve ter ocorrido o suposto acidente no ônibus e gozando de péssima saúde.

O que realmente tenho certeza é de que, quando acordei, estava sobre a cama de uma casa um tanto fria, porém bastante aconchegante, e vi sair correndo dos pés da cama uma menina de oito anos, que soube depois se chamar Estéfani. Ela voltou com sua mãe, e parecia querer dizer algo como “o irmão do Kevin acordou”. Não consegui continuar com os olhos abertos, mas ouvi a senhora cantar qualquer coisa em guarani, como que declamando um feitiço.

Um trovão de força imensa soou lá fora. A chuva e o canto da senhora de alguma forma acalmaram meu coração, e segui dormindo, apesar de ainda não saber onde estava e não ter a mínima idéia de quem seria Kevin.

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