Ia assim pensando dentro daquele ônibus que, apesar de
visivelmente limpo e bem cuidado, carregava um aspecto de encardido até suas
reentrâncias devido a anos mastigando a poeira daquelas estradas. Por mais que a civilização dali se aproxime, a
terra vermelha estará sempre cobrando nossa origem, lembrando do nosso aspecto
primitivo e selvagem.
E era a presença daquela terra que começava a me deixar
deprimido. Eu havia abandonado meu trabalho para viajar pela América do Sul
tentando ser um jornalista independente, sem jamais ter escrito uma matéria
sequer para os jornais e revistas aos quais eu queria vender material. Depois
de seis meses de viagem com minha namorada, sem ganhar sequer um tostão, resolvi
seguir viagem sozinho para pesquisar a vida dos brasiguaios. Queria escrever um
livro sobre o assunto, sem me dar conta de que não sabia absolutamente nada a
respeito do tema e que jamais escrevi uma história que tivesse mais de três páginas.
Além de ignorância e inexperiência, também colaborava para a
perspectiva de fracasso de mais esse empreendimento o fato de eu ter sido
sempre um sujeito ensimesmado pouco sociável, que precisaria agora entrar em
contato com os mais diversos tipos de gente se quisesse mesmo traçar um bom
perfil da situação da área. Tal como o vermelho da terra insistia em manchar as
calçadas e vitrines das cidades por onde passava, também a realidade começava a
manchar e ameaçar sufocar mais um sonho.
A paisagem, apesar de bastante rural, já era bastante
distinta do ambiente tribal que tinha conhecido no interior da Bolívia. O
Paraguai, apesar de pobre e pouco desenvolvido, já tem sua cara de mundo
ocidental e capitalista, com seus cartazes coloridos nas paredes dos bares de
rodoviária e latas de Coca-Cola abandonadas em paradas de ônibus.
Mas não foi uma lata de Coca-Cola a última imagem que vi
antes de apagar. O que surgiu dentro dos meus olhos, e permanece vivo até hoje
mesmo que eu queira esquecer, foi a primeira visão da solitária e fúnebre menina
que seguiria aparecendo até o fim dessa viagem. Alta e esguia, com pela muito clara,
caminhava solitária sobre o acostamento e me olhou diretamente nos olhos, como se
soubesse que eu passaria por ali, de onde eu vinha e para onde ia. O olhar
profundo e ao mesmo tempo vago me de uma sensação de horror, como de ter sido
descoberto em uma fuga ou como se soubesse ser perseguido.
Mal deu tempo de esfregar as pálpebras para ver melhor e
ouvi o baque seco seguido da sensação de abandonar a poltrona, como se o ônibus
perdesse o contato com o solo. O que se seguiu foi uma tremenda confusão de visões
e sons dos quais não consigo me aproximar e descrever.
Até agora, não pude compreender o que verdadeiramente
aconteceu, mal sei dizer a altura do trajeto por onde andava e, se meus
cálculos estiverem certos, despertei a centenas de quilômetros adiante de onde
eu planejava estar, três dias depois da data em que deve ter ocorrido o suposto
acidente no ônibus e gozando de péssima saúde.
O que realmente tenho certeza é de que, quando acordei,
estava sobre a cama de uma casa um tanto fria, porém bastante aconchegante, e vi
sair correndo dos pés da cama uma menina de oito anos, que soube depois se
chamar Estéfani. Ela voltou com sua mãe, e parecia querer dizer algo como “o
irmão do Kevin acordou”. Não consegui continuar com os olhos abertos, mas ouvi
a senhora cantar qualquer coisa em guarani, como que declamando um feitiço.
Um trovão de força imensa soou lá fora. A chuva e o canto da
senhora de alguma forma acalmaram meu coração, e segui dormindo, apesar de
ainda não saber onde estava e não ter a mínima idéia de quem seria Kevin.
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