Como alguns devem saber, passei quase o 2011 inteiro
viajando pela América do Sul em condições franciscanas. Coisa de mochileiro burguês
metido a aventureiro: pedir carona, andar em coletivos, ficar de favor em casa
de moradores locais... Boa parte dessa viagem passei no Paraguai. Foram em
torno de três meses entre o interior e a capital.
Devo dizer que saí de lá em surto psicótico e que tudo que
consegui economizar durante a jornada já se consumiu há muito tempo em horas psicanalíticas
e jogos suicidas. Nada disso foi responsabilidade do país, que sempre me
recebeu muito bem – e é bom que isso fique claro. Por outro lado, não posso
deixar de mencionar que há coisas que me dão uma visão conturbada dos fatos e
fazem com que eu tenha de montar esse relato como quem monta um quebra-cabeça sem
saber que peças deixou fora de lugar e que figura será revelada ao final.
Estava aguardando para escrever isso em uma hora mais
oportuna, embora esse negócio de hora mais oportuna não exista. Como o bicho
está pegando lá, resolvi começar de uma vez, e o que me importa nessa primeira
postagem é refletir sobre a súbita aparição desse país na mídia com tanta força
e porque tudo que está sendo noticiado tem tanto relação conosco.
É sabido que o Paraguai é uma ilha cercada de terra, e que
um pedaço dessa terra que o circunda é nossa, como o Fantástico te faz lembrar
de vez em quando, ao requentar pautas de contrabando de armas e tráfico de
drogas. Mas agora parece que a coisa ficou (mais) séria. O presidente Lugo está para ser defenestrado e cinco ministros já
abandonaram o barco. Muito sangue foi derramado entre policiais e agricultores,
e agora o presidente não pode ficar mais em cima do muro. Lamentar a morte dos
colonos e ao mesmo tempo defender a força policial é uma contradição que não
agradou a ninguém, e o lado mais forte está cobrando por isso.
Sim, porque nesse momento há só dois lados nessa história: o
grupo que quer uma divisão igualitária de terras e o grupo que quer ver
prosperar ainda mais o agronegócio – a decisão de transformar a zona de
fronteira em uma franca área de agricultura mecanizada foi feita há décadas,
muito dinheiro foi investido nisso e ninguém quer voltar para casa sem receber
o seu quinhão.
Não é preciso dizer que o grupo do agronegócio é mais forte
do ponto de vista econômico e político. A causa dos agricultores sem terra talvez
tenha um contingente populacional maior a seu favor, mas é praticamente
impossível fazer dois paraguaios concordarem sobre qualquer assunto, o que
torna inviável pensar num movimento articulado nesse momento, apesar de existirem
alguns grupos radicais mais coesos.
Talvez o pessoal do Jornalismo B saiba me explicar, mas eu não
entendo porque uma informação não aparece nas coberturas midiáticas sobre a
questão: o Paraguai é o segundo maior país a receber imigrantes brasileiros,
perdendo apenas para os Estados Unidos. Sim, uma enorme quantidade de brasileiros,
filhos da grande potência sul-americana, vai buscar seu sustento e criar seus
filhos no Paraguai. Isso mesmo: é o primo pobre sustentando boa parte dos
filhos desse pretenso pai rico.
E o que isso tem a ver com a tensão política desse momento? Não
é só a preocupação com os brasileiros que agora lá estão que nos toca – pode acreditar
que eles aprenderam a se virar sem nosso apoio há um bom tempo. O fato é que
essa opção de modelo agrícola de monocultivo mecanizado tem empurrado cada
vez mais paraguaios para fora do campo (e até mesmo para fora do país) e isso está no centro de toda a intriga de poder que acompanhamos
agora. Aí está o ponto: essa opção foi implementada com a conivência e até mesmo com
o apoio do governo brasileiro.
Quem aí já ouviu falar em brasiguaios? Não é estranho que
filhos do Brasil, uma das maiores economias do mundo, precisem buscar seu
sustento em um país vizinho considerado mais pobre? E por que o governo paraguaio prefere que
trabalhadores brasileiros ocupem suas terras, ao invés de trabalhadores paraguaios?
São essas e outras questões que pretendo tocar durante os
relatos. Provavelmente não vou respondê-las, mas espero que tudo aquilo que vi
e senti possa ajudar o leitor a buscar suas próprias respostas.
* Na próxima semana: realidades paralelas e universos
alternativos sobre o Aquífero Guarani. Acompanhe as postagens pelo RSS, twitter ou facebook.
Imagens de Olmo Calvo
Parabéns. Tenho acompanhado as notícias de lá pela BBC Brasil e fico intrigada com as matérias produzidas (texto e vídeo) porque só os brasiguaios falam. E a pergunta é, o que os paraguaios dizem, porque o microfone não está na boca deles?
ResponderExcluire VIVA O PARAGUAI! Vamos acompanhar de perto.